13 de dezembro de 2013

CRÓNICAS DE "BUSTOS DO PASSADO E DO PRESENTE"



“Eloi do Belenenses” garante a vitória dos Gavetas
  Sérgio Ferreira


Grande tarde de futebol num pelado da Bairrada-Sul fora anunciada durante toda a semana.
O staff junta-se à sede do Futebol Club de Bustos instalada ali por cima da loja do António Nariz. Do outro lado, da sede dos Azuis de Bustos, os Canecas metralham os da banda de lá da rua com provocações – é melhor já deixarem a bandeira a meia-haste; levem cabazes com fartura que a safra vai ser boa, etc. O astral dos Gavetas ficou tão em baixo que nem sequer retorquiram. Por se antever um jogo de arromba, a deslocação fez-se de automóvel. Lino Rei, que acumulava as funções de director e treinador, olheiro e aguadeiro, patrocinador e carola [passadas décadas a situação repete-se, não é Dr. Fernando Vieira!] leva o seu bruto espada Dodge e contrata o serviço de aluguer a Manuel Pardal com o Chevrolet e a Júlio Barreiro com o carro montado por ele, até parecia falar esperanto: carroçaria Nash, motor Ford, e o mais que tivesse à mão. O certo é que o trabalhar do motor parecia um relógio suíço. O Pardal das bicicletas fora o primeiro a chegar e impacientava-se pela demora do Júlio Barreiro. “O Júlio C. sabe que eu não ando a mais de quarenta”, vociferava. Partida debaixo de arruaça dos canecas, a caravana desvia-se no Sobreiro pelos cinco caminhos e pára em frente à Adega Social – Casa de almoços, jantares e ceias, frequentada pela “mais selecta clientela” de Aveiro e arrabaldes. Era habitual haver animação com espectáculos ao vivo. Fados, guitarradas, bailados, ilusionismo e outras variedades. Poesia pelo 5 de Outubro e pela independência. Um luxo para a época.
O Lino Rei entra. Demora-se e o Manuel Pardal inconformado com a demora, exclama: “se não fosse esta paragem já íamos a entrar na Caneira”.
Mal completou a frase sai o Lino Rei na companhia de um reforço da equipa. E lá vão de abalada na louca velocidade imposta pelo Pardal.
Viagem sem sobressaltos mas com os solavancos nos buracos do macadame acompanhados pela poeira a anunciar a viagem dos gavetas.
Chegada ao campo. Mal saem das viaturas. Ouve-se uma boca: Olhem que “eles” estão reforçados com jogadores da Académica. Até parecia que os canecas tinham aqui uma sucursal. Zé Valério, repentista, dá o troco: “E nós trouxemos o Eloi do Belenenses!”. E vira as costas. Deu-lhes um baque. – Era sabido que a equipa de Belém, após defrontar o FCPORTO no campo da Constituição, e de regresso ao Sul, alguns jogadores passavam por Bustos onde eram recebidos por Manuel Sérgio que chegou a ser um grande mecenas dos Azuis das Salésias. Além disso, era também do conhecimento através dos jornais a realização de um jogo amigável com a sua filial, no Campo do Dr. M. Santos Pato. Jantarada e bailarico, vestidos e fatos a estrear completavam o cardápio da visita.
Começa o jogo. A bola sempre em bolandas de lá para cá e de cá para lá. A assistência caseira só põe os olhos nas intervenções do famoso interior Eloi, emprestado pela equipa da Cruz de Cristo. A despropósito, no intervalo, a assistência prolongou os comentários do futebol praticado pelos gavetas, filial do F.C. Porto, até às célebres torres de Belém (Capela, Vasco e Feliciano). E o teimoso zero a zero já se mostrava um resultado favorável para os anfitriões.
Entretanto surge uma falta a meio campo a nosso favor e o Lino Rei faz um sinal mágico ao Eloi. O reforço dos Gavetas dispara um estoiro com tal gana que a bola parecia ir para as nuvens, mas num ápice ela muda de trajectória, desce como se fosse um míssil teleguiado e quando o “keeper” se estica para a agarrar, já ela estava a adoçar as malhas da rede.
Um golão que pôs a assistência em delírio, mesmo a afecta à equipa da casa, e que veio a ser o da vitória. O caso não era para menos, tinham assistido à marcação de um golo do gand’Eloi.
No fim do jogo havia merenda numa afamada casa de pasto. O serviço estava demorado e o Zé Valério, sorrateiramente, vai à cozinha, que no momento estava vazia. Vê um grande tacho com chanfana, já cozinhada, destinada aos estudantes da Briosa (este o título de um jornal da academia criado e dirigido pelo Dr. Manuel Santos Pato, quando estudante coimbrão). Rapa o pitéu do fogão e põe na mesa. A energia e o pundonor postos no jogo continuaram na devora da cabra a meio-dente, preparada com receita do Buçaco, acompanhada de batatas abertas ao meio, cozidas com pele e grelos da meia encosta. A fogaça ainda estava quente a sair do forno. A picheira foi renovada várias vezes. O pipo estava de plantão ao lado da mesa. Ainda houve tempo para ao remate final, a aletria com a canela a desenhar a quadrícula. Enfim, foi um ver se te avias. E a liturgia do acto foi cumprido em silêncio quase absoluto para não levantar suspeitas. Chega a trupe de estudantes, equipada a rigor de capa e batina e chanfana,... viste-la. Felizmente aceitaram a partida pregada. Até justificaram. Não era todos os dias que estavam na companhia de um virtuoso da bola. 
 O famoso Eloi era o Neo Pato

Em suma, os gavetas reforçados com o Eloi venceram e convenceram no campo e na secretaria (mesa).
Só que o famoso Eloi era o Neo Pato – um caneca, na ocasião estudante na faculdade de Engenharia do Porto, por isso desconhecido da malta de Coimbra, que na arte da bola aprendera a lição do seu colega da defesa Joaquim Pintor, também caneca de corpo inteiro, que lhe dizia muitas vezes durante os jogos: “aguente daí seu Neozinho... que daqui não passa nenhum”. O Lino Rei, um orientador técnico perspicaz, convidara o Neo para reforçar a equipa. A demora havida na Adega Social foi justificada mais tarde: os dois aproveitaram para acertar pormenores para trazer um grupo de variedades de Lisboa que estava a actuar no Casino de Espinho.
Constou-se que, no regresso, o Pardal dos patos levou o Chevrolet a atingir uns estonteantes quarenta e um quilómetros por hora. Dizia para os seus botões: “para a notícia chegar mais cedo”.
Só que o sabor da vitória das gavetas durou apenas o percurso da viagem. Mal os canecas souberam que o Neo Pato tinha marcado o golo que deu a vitória, de imediato reclamaram como sendo sua. Não foi preciso atirar mais achas p’ra fogueira.
E, no centro de Bustos, a rivalidade revoltou à normalidade.

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