21 de janeiro de 2010

CIPRIANO ... 'A SALTO'


Com fundas raízes bafejadas pela aragem do azul-metálico do mar de Quiaios, nascia Cipriano Nunes, quando o ano de 1951 cumpria a sua viagem efémera. Dois anos feitos e o Cipriano, irmão mais novo da Celeste e da Carlota, entra em Bustos ao colo da sua Mãe (1) na companhia do agregado familiar de então. O Pai (2), carpinteiro, vinha trabalhar para Evaristo Pinto, com larga folha de obras. Por essa altura, Evaristo Pinto "tinha três ou quatro carpinteiros a trabalhar"...o Sr. Sérgio seguiu os passos do Sr. Mamede e do Sr. Valsas, também de Quiaios, os quais viveram e trabalharam anos em nossa casa" (3). Anos depois, o Sr. Sérgio ingressava na recém criada SMIDA(4).

Infância?, ... só abreviatura!

A sua infância foi igual a tantas outras da década. Tinha de criar os seus brinquedos, jogar à bola descalço, brincar ao bugalho e ao pião e aprender a andar de bicicleta, ir aos ninhos, armar os costelos, nas noites de Verão apanhar pirilampos (luze-cus). Poucos anos durou a brincadeira. As bocas em casa tinham de ser alimentadas e os tostões escasseavam.



(foto cedida por Milita Aires)


A partir das férias grandes da 3ª para a 4ª classe, o Cipriano experimentou a dureza da vida de trabalho. Enquanto os companheiros ainda podiam jogar a bola no adro da Igreja Velha ou no coradouro da Fonte do Corgo ou no Largo do Rossio,.. o Cipri era aprendiz de carpinteiro na SMIDA, sob a vigilância directa de seu Pai. Uma nota de vinte escudos (5), foi o soldo da primeira semanada. Exame da 4ª classe concluído, entregou a saca da escola à Mãe e ei-lo a acompanhar o Pai e seu Mestre para retomar o lugar, já seu conhecido.

Domingo era dia de descanso?
A Cacilda e mais tarde a Áurea vieram aumentar para sete o calor do Lar. Mas não se vivia do ar….
A Sr.ª Celeste e o Sr. Sérgio não eram terra-tenentes na terra de adopção. O Cipriano andaria pelos treze anos e ei-lo a amealhar mais uns tostões fora das horas do emprego.
Vamos ouvi-lo:
“… aos domingos, nos dias de festa, ou noites de baile, etc. engraxei sapatos e no final do dia lá conseguia ganhar uns 30 escudos (6). [Cheguei a ter] vergonha porque pensava que era um trabalho de miséria.”

Entretanto, pouco tempo trabalhou na SMIDA. Passou por mais dois serviços em Bustos onde o processo de ensino-aprendizagem era atormentado com agressão gratuita. O diabo muito pão teve de amassar para o Cipriano comer.
«Vítima fui, infelizmente era um método de educação ancestral, sobretudo com os mais fracos saidos de um nivel social inferieur. Como diz a canção da Edith Piaf "je ne regrette rien"».



A S.ª Celeste condoía-se… sofria em surdina. O tormento acumulava-se dia-a-dia, até que em 1968 o Cipriano ingressa no Stand Justino (Aveiro) como ajudante de mecânico. Valera-lhe o empenho de um amigo do Eng.º Justino, o Senhor Adriano Morgado, emigrante dos USA então regressado para desfrutar a reforma na sua terra.
Cipriano deslocava-se diariamente na carreira da Empresa José Maria dos Santos ou de motorizada Honda – comprada em segunda mão.
Aqui é tratado como pessoa. A realidade do mundo abre-lhe horizontes de uma esperança escondida.

O baterista entra em cena…
O uso das primeiras lâminas de barbear coincide com a corrida aos bailaricos e arraiais à busca de uma furtiva troca de olhares enamorados. Desencontros e calcadelas durante um pé de dança faziam a confiança encoberta. Tentava-se fintar a vigilância surda do “arame farpado” enrolado em xailes de coscuvilhice.
O arraial não era considerado festa enquanto não fosse colocada uma “flor” na lapela pelas mãos a adivinhar carícias não conseguidas...
Cipriano tem presente um lote de grupos musicais que deram brado: “Pavões, Perus, Central, Ferreira Júnior, Faraós, Estrela Azul e outros …” e, comparando as épocas, considera que «povo gostava mais de festas que actualmente, embora o dinheiro fosse pouco, havia mais alegria».
Em “68 tinha eu 17 anos de idade. Eram os Beatles os nossos ídolos. A minha vontade era ser baterista”.
Não se cansava de ouvir os seus discos … As canções acompanhavam o bater do coração. O ritmo morava dentro de cada um de nós.

O Conjunto Amadeu Mota vem a caminho ...
O Cipriano aprendeu a gostar de música com o Mário da Lena, então “vocalista e guitarrista no grupo musical Ferreira Júnior”. Quando se encontravam, ouviam, cantavam e apreciavam as canções debitadas pelos discos.
Retrocedendo a esse tempo ainda mantém o desejo: «Gostaria de um dia encontrar o Mário da Lena». Emigrou para os EUA em 1972.
O Cipriano ainda «prestou provas como vocalista» ...mas o que pretendia mesmo era ser baterista.
Deu os primeiros toques de bateria com o Fernando, dos «Faraós». Esteve com o Edmundo Nogueira (saxofone) e Mário Martins ‘Barroca’ (acordeão) no efémero conjunto «Elas e Eles», também da Mamarrosa.

Entretanto, «chegou o Amadeu com grande experiência na música e aí formámos o grupo», “Amadeu Mota”
Era tempo das despesas mínimas. Tudo mínimo. A «aparelhagem era mínima e o carro de aluguer era suficiente», enquanto os outros conjuntos «tinham carros americanos que consumiam 20 e 30 litros aos 100 Km. (belos tempos!) o nosso taxista era o Sr. Miguel, de Vagos».

A partir do sucesso alcançado na tarde da nossa apresentação exibindo "boas canções da época, no Salão de Campanas" (7), o conjunto ‘Amadeu Mota’ acumulou uma carteira de contratos sempre em ascensão. E as fãs não faltavam..
Entretanto as exigências repartidas pelo emprego e pelas noites do serviço do “Amadeu Mota” e os vinte anos a chamá-lo para o serviço militar «fizeram-me pensar no futuro».

Desligar-se do Conjunto «Amadeu Mota» do qual ainda tem boas recordações, foi a decisão menos difícil. O serviço militar e a guerra colonial garantiam um futuro incerto e de longa duração.

Ele lá tinha a sua ideia. Tinha procurado muito, meio à boca calada, que a guarda punha-se à coca” (8)

Como os amigos são para as ocasiões, encontra alguém conhecido que vivia em Lyon (França) e o orienta na longa aventura.

A 30 de Agosto de 1970, os dois viajam de comboio de Aveiro - Porto. Discretamente - passam por Felgueiras, onde recebem mais dois companheiros até Chaves, fim do percurso ferroviário do quarteto.
Aqui fintam possíveis vigilantes, atravessam a fronteira a pé – de noite – sem a ajuda de ninguém.
«Já em Espanha, ainda próximo da fronteira, descansámos numa "meda" de palha até ao amanhecer.

O 'pas de problème' teve a conivência de Espanha

De seguida, na estrada nacional mais próxima, um autocarro levou-nos até Léon (Espanha). Prosseguimos a viagem de comboio até Hendaye (França).
Em Hendaye (pas de problème).
Nenhum controle pela Polícia das Fronteiras.
Entrámos descansados em França.
Após quatro dias de viagem chegámos a Lyon.
Aí fiquei durante 24 anos.»
...
O «A Salto» fez história ...
Sair de Portugal para não cumprir o serviço militar foi um acto de natureza política contra o regime de Salazar. Cipriano não estava isolado. O fluxo dos emigrantes 'a salto’, no período compreendido entre 1967 e 1974, teria ultrapassado os 350.000 clandestinos. E os mancebos em idade militar ajudaram a engrossar este número.
O cômputo geral representava consciente ou inconscientemente um acto político que o regime quis ocultar, censurando as notícias.
As irmãs [Celeste e Carlota], apanhadas de surpresa, contam que só mais tarde souberam da fuga do Cipriano e que se encontrava bem em França.
_________


(1) Maria Celeste Nogueira São Miguel (1928 - 1983)

(2) Sérgio Marques Nunes (1928 – 1979) carpinteiro, veio para Bustos para trabalhar na SMIDA (3) Esclarecimento de Franklin Pinto, filho de Evaristo Pinto. Um bem-haja.
(4) SMIDA - Manufactura Industrial de Madeiras. Inicialmente instalada no Sobreiro na antiga serração de Joaquim Tribuna.
(5) 20$00 = 0,10€
(6) 30$00 = 0,15€
(7) O Salão de Baile das Campanas, antes foi armazém de sal.
(8) odete ferreira, freixo à la minuta … (recontos) [Riba Douro], edição Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta, 1996.


Notas
(a) Um agradecimento a Cipriano Nunes por permitir que seja publicado um esboço do seu retrato de uma época particularmente difícil da sua vida.
(b) A peça não pretende ser exaustiva, NB espera que CN aceite o desafio de escrever as suas memórias de emigrante… de nómada ... dos reencontros ... Férias...
(c) reitero o agradecimento ao Franklin pela sua prestimosa ajuda.

d) Cipriano no Notícias de Bustos, consultar aqui e aqui
sérgio micaelo ferreira.(se&o)

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