28 de maio de 2009

ARSÉNIO MOTA COM DOIS POEMAS DE MARIO BENEDETTI

Em Carta para Linda Ln (Califórnia), de 23.05.09, Arsénio Mota presta homenagem a Mario Benedetti (14.09.1920 - 17.05.2009).
Com a devida vénia NB edita a tradução de dois poemas do autor uruguaio. aqui

DEPOIS
O céu sem dúvida não será este de agora
quando me aposentar o céu
vai durar todo o dia
todo o dia cairá
como chuva de sol sobre a minha calva.

Eu estarei um pouco surdo para escutar as árvores
mas de todos os modos saberei que existem
talvez um pouco velho para andar na areia
mas o mar ainda me deixará melancólico
estarei sem memória e sem dinheiro
com o tempo nos meus braços como um recém-nascido
e chorará comigo e chorarei com ele
estarei sozinho como uma ostra
mas poderei falar dos meus fiéis amigos
que como sempre relatarão da Europa
seus cada vez mais tímidos contrabandos e galardões.

Claro estarei na orla do mundo contemplando
desfiles de crianças e pensionistas
aviões
eclipses
e regatas
e porei o chapéu para mirar a lua
ninguém me pedirá relatórios nem balanços nem cifras
e só terei horário para morrer
mas sem dúvida o céu não será este de agora
esse céu de quando me aposentar
terá vindo demasiado tarde.

EDITORIAL
A nação é uma maçã
uma vermelha e convidativa maçã
e não sabemos quem a morderá

a nação é uma corneta
uma rouca gasta corneta
e não sabemos quem a tocará

a nação é uma lagosta
uma atlética horrível lagosta
e não sabemos quem a matará

ah nós estamos pela Reforma
ou seja afogamos as cornetas na sua tinta
e comemos as maçãs com a sua casca
e convidamos as lagostas para o chá dos domingos

claro que estamos pela Reforma
ou - por outras palavras - contra a Reforma
e já que o prestigioso colega nos recorda
que onze por cento dos nossos lactantes
são comunistas e úteis cretinos
o nosso próximo slogan terá que ser
dar-lhes-emos biberões com arsénico

assim estaremos moralmente preparados
para regar com método e talvez com piedade
a terra dos homens de boa vontade.

Mario Benedetti, Poemas de la oficina / Poemas del hoyporhoy (1956-1961), Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 2000, pp 24 e 44, respectivamente.

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