2 de dezembro de 2006

A CANDEIA DOS POBRES ERA UMA PINHA

Maria e Serafim Costa com os filhos, Manuel e Augusto

A minha avó paterna chamava-se Maria dos Santos da Silva. Filha de Manuel Francisco Reis Pedreiras e de Joana dos Santos Silva, nasceu em 18 de Abril de 1890. Viveu uma longa vida, lúcida e independente, tendo falecido com 96 anos.

Certo dia estivemos à conversa e ela falou-me dos tempos em que era jovem, das primeiras décadas de 1900. Aqui fica o seu testemunho, talvez a síntese de uma vida. Na primeira pessoa:

“A vida nunca foi para mim de fome, porque era filha de um agricultor, já outros passaram por muita… Mas todos passámos muitas necessidades porque a agricultura dava para comer, mas mal, nada que se compare com o que é hoje…Não havia quase nada.
A comida era; sopa ao meio-dia, batatas com couve à noite. Conduto só em dias especiais, dias de festa importante! Também as terras que hoje dão 100 alqueires naquele tempo davam vinte… Nem sequer havia tractores, usavam-se arados de pau com mãozinhas de tirar e pôr...

A candeia dos pobres era uma pinha.

Alguns homens iam para o Brasil…O primeiro a ir para a América foi o Morgado, pai da mulher do Cigano Padeiro. Os que ficavam também iam trabalhar para longe. Em Maio iam para o Alentejo ao milho e ao centeio. Trabalhavam pela comida e a jorna era uma banha de porco. No Inverno iam trabalhar para as hortas de Lisboa.

Trabalhámos muito.
No dia de S. Pedro íamos para os penedos, à pedra para coser a cal. Os lavradores que tinham os fornos eram mais abastados e iam com os homens e as mulheres da jorna, acartavam a pedra para os fornos, coziam-na e seguia para S. Bernardo.

A vida era outra… O sulfato era feito em casa e levado numa panela de barro para as vinhas. Levava-se também uma frigideira e um pincel. Com o pincel besuntava-se a vinha. Espalhávamos o sulfato usando a frigideira, que servia ainda para apanhar os pingos que iam caindo. Assim se punha o sulfato, por três vezes.

Passados alguns anos, mas uns bons anos mesmo, três agricultores juntaram-se e compraram uma máquina de sulfatar. Um homem com a máquina ganhava dois tostões ao dia.

Divertimentos não havia. Descanso só ao domingo para ir à missa e namorar. Em geral cada um se casava na sua terra. Namorava-se à porta de casa, ou no campo quando se ia ao pasto. E namorava-se à noite quando íamos escapelar o milho para a casa dos vizinhos.

Tinha 26 anos quando me casei com Serafim Simões da Costa. Havia a Grande Guerra e a filoxera, duas desgraças, e por causa delas passámos muito mal.
Trabalhei muito e dormi pouco. Ele ia trabalhar para Lisboa e eu ficava com os filhos, o meu Augusto e o meu Manuel, e a vida agrícola por minha conta.
A vida era outra… e outra ficou, porque começaram a plantar bacelos. Vieram-me dizer:
- Atão, o teu homem tem escrito? Deixa-o lá andar que ganha algum dinheiro, mas eu ganho cá mais!
Aquilo cortou-me o coração e eu escrevi-lhe para ele voltar, mas ele não queria.

Um dia o Ti Peneiro foi a Santarém vender bacelo e ganhou 900 mil reis! Quando tal me contaram fui logo comprar os primeiros bacelos e escrevi ao meu Serafim a dizer-lhe que já não precisava de continuar em Lisboa para ganhar a vida. Foi assim que o convenci a voltar, e ele começou a comprar bacelo e a ir vendê-lo às feiras.”

BC

7 comentários:

  1. Anónimo22:20

    A fotografia de família é mais uma peça do tesouro dos anos 20(?) que merece ser estudada.
    A migração de Bustos com destino a Lisboa não deveria ser rara.
    Durante algumas décadas, a produção de bacelos teve algum incremento em Bustos e alguns bons milhares foram os pés de videiraa do Ribatejo.
    A peça do Belino é mais um hino à mulher de Bustos. lentamente NB vai mostrando a participação da mulher na economia caseira.
    sérgio micaelo ferreira

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  2. Anónimo15:17

    Custa-me acreditar que o Ti Peneiro, que aliás, conheci muito bem e que me ensinou a enxertar bacelo, tenha vendido o bacelo por 900 mil reis (que equivalem a 900 escudos da Republica, mas na altura da venda do bacelo pelo ti Peneiro e até há pouco tempo as pessoas da minha terra usavam a designação monárquica do dinheiro; em reis ou tostões). Como antigo colecionador de moedas, parece-me que 900 mil reis seria uma fortuna, se bem que não sei o valor do dinheiro na altura inflacionária do pós-Grande Guerra. Eu possuo um pinhal que herdei do meu pai que foi comprado por 40 mil reis (e é assim conhecido) e que eu sempre achei muito caro, porque até à altura da Grande Guerra, este valor equivalia a quatro grandes moedas de ouro de 10 mil que valem hoje mais de cem contos de reis cada. Sejam 90 ou 900 mil reis ou escudos, valia certamente a pena deixar Lisboa e vir para a aldeia, plantar bacelo. Nunca conheci o Serafim Costa, mas deve dizer-se que foi um grande Republicano (daqueles que nasceram e viveram em Bustos) e que era muito amigo do meu pai.
    Muitas pessoas não sabem a história da filoxera, nem da necessidade usar cavalos de bacelo de castas americanas para combater a filoxera, mas essa história fica para outro dia.
    Milton Costa

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  3. Anónimo16:45

    Esqueci-me de uma pequena história que a Ti Maria (Maria dos Santos da Silva) me contou um dia.
    No Outono muitas pessoas de Bustos iam a Mira a pé comprar sardinha para salgar. Na praia amanhavam os peixes, cortavam a cabeça e salgavam os "rabos de sardinha" em caixas de madeira. As mulheres traziam a sardinhas salgadas à cabeça (às vezes em carroças ou carros de bois) para usaram durante os meses de inverno.
    Como gosto muito destes "rabos de sardinha", já está planeado uma "ceia" (como se dizia antigamente para a última refeição do diaque agora se chama "jantar") que consiste de "comida de azeite" com raros de sardinha salgados. O Agostinho já encomendou as sardinhas salgadas e vamos usar a maneira antiga com travessas para várias pessoas; nada se pratos individuais.
    O Azeite e o vinagre vão ser locais.
    Milton Costa

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  4. E o meu avô Vitorino contava que nos tempos da Segunda Grande Guerra o racionamento era tal que nem uma sardinha se arranjava para acompanhar as batatas. Certo dia ele prometeu aos filhos uma sardinha de conduto.Quando eles viram chegar a travessa só com batatas começaram a perguntar pela sardinha. Ao tempo não se usavam pratos, todos comiam do mesmo, e o meu avô respondeu-lhes:
    - Comam, comam com vontade que lá no fundo vão encontrar a sardinha.
    Eles assim fizeram descobrindo que no fundo da travessa havia mesmo uma sardinha, mas pintada...Fazia parte da decoração da loiça!

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  5. Anónimo11:00

    Foi em 14 que começaram a circular as primeiras notas (em escudos). Também não sei o valor dos tais 900 mil réis na ocasião do negócio. Sabe-se que o escudo foi depreciado 20 vezes no tempo da primeira república, até 1928,como tal não deveria corresponder a muito dinheiro.
    O negócio do Bacelo deveria ser muito rentável, já que a mão-de-obra era quase toda caseira, Daí os casais das casas abastadas apostarem quase sempre em prole numerosa. Cada filho varão que nascia era menos um criado a sustentar.
    Aguardo o trabalho sobre a filoxera que destruiu um sector da economia. Nem o Douro escapou. Apenas vou referir a uma curiosidade. A cada passo, nas matrizes prediais surge a localização ‘Mortórios’. Esta designação também pode indicar antiga existência de vinha que foi dizimada pela filoxera.
    A deslocação a Mira para a compra de peixe era feita em ranchos. O dr. Assis Rei, antes de ser dr ponto, também chegou a ir lá. A pé. Mas por atalhos e em companhia a coisa não custava.
    Mais tarde, com a venda ao domicílio, a sardinha – grande – era comprada ao cento e o amanhar e a salmoura era trabalho feito à noite. O sardinheiro chegava a Bustos já de noite. Este é apenas um pormenor. O Ilídio “sardinheiro” [outro ícone de Bustos] que deu brado na distribuição de peixe, ainda não tinha o seu negócio
    sérgio micaelo ferreira

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  6. De vez em quando e a meu pedido, a mãe Benilde salga umas sardinhas de véspera e vai de comê-las, de "azeite", com as imprescindíveis couves e batatas.
    É pitéu que não dispenso, como não dispenso uns biqueirões conservados em azeite, despois de mantidos durante cerca de 6 meses, bem prensados e às camadas, em barricas salgadas.
    O petisco é algarvio e este fim de semana vou a Ferragudo buscar mais 1 ou 2 frasquitos.
    Não digam nada ao Milton nem ao James, que eles são doidinhos pelo petisco (com gente desta, o frasco de 1 litro mal dura um dia...)

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  7. Anónimo07:59

    Há mais um candidato. Além de petisco é remédio ...
    srg

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