4 de junho de 2006

TEMPOS DE REGA

Gemia a nora sob o peso dos alcatruzes, gargalhava a água caindo na caleira, deslizando em enxurrada para fora do poço, correndo pelo rego, regando o frondoso campo de milho.
Atrás do grande boi amarelo de olhos tapados eu marchava, chapéu na cabeça e uma longa vara na mão, anunciando ao animal que se parasse a caminhada circular lhe garantia uma pancada seca, ou até uma ferroada com o afiado aguilhão. O boi nada via, mas pressentia os meus passos pequeninos e caminhava sem parança por entre a música do engenho e o ecoar do mergulho dos alcatruzes no fundo do grande poço.

Tudo então era maior do que eu, o boi, a nora, o poço, a vara. E o céu era imenso, a vastidão dos campos parecia não ter fim…
Caminhava o boi pisando e repisando o caminho, abrindo um sulco no chão e eu, já farto de tanto andar sem sair do mesmo sítio, inventava maneiras de manter o boi em andamento sem que tivesse de caminhar. Era fino o bicho pois pressentindo a minha presença, o assobiar da vara vergastando o ar, acelerava a passada mal se aproximava do lugar onde, sentado, aguardava o seu passar. Por fim até disso me cansava. E farto de tanta monotonia, de tão grande prisão, com a minha mãe conduzindo a água, escondida pelo milho, deixava a vara enterrada no chão em sinal de ameaça omnipresente, e partia em busca de ninhos, da fruta brilhando nos pomares ou fazia corridas entre pequenos pedaços de madeira rego adentro.

Esquecido do boi, da vara e dos alcatruzes era menino e brincava.


Mas o boi mesmo de olhos vendados tinha vistas largas, tudo pressentia, e logo parava a marcha circular saboreando o descanso. Até que minha mãe surgia, de enxada na mão, chamando por mim, reclamando da falta de água, lembrando-me um velho refrão: “ Em casa deste home(m) quem não trabalha não come.”
Contrariado, incompreendido, voltava a pegar na vara, retomava a função. E nessa noite, ao deitar, depois de me aconchegar as mantas, a minha mãe haveria de me sussurrar uma vez mais:
– Dorme filho, descansa que amanhã é dia de pica o boi!

Passaram alguns anos e o meu vizinho latoeiro deixou de fazer alcatruzes. Surgiram os motores de rega acabando com a arte, revolucionando o trabalho. Mas ainda assim sem livrar os miúdos da sua parte no labor da casa. O roncar do motor substituiu o chiar dos alcatruzes e eu passei a cumprir nova função, a anunciar o momento da chegada da água ao fim de cada rego.
– Já chegou! – gritava eu lá do fundo, escondido entre o alto milho. E minha mãe, na outra ponta, a golpes de enxada conduzia a água para um novo leito.
– Já chegou! – repetia o grito monótono, mais uma vez, e outra, e mais outra, em tardes sem fim. Até ao dia em que a monotonia e o aborrecimento desapareceram sem mácula. Foram-se, sem mistério ou milagre!
Tudo porque transformei os campos de milho em salas de leitura. Sentado na terra, com os pés descalços no fim de cada rego, bem podia ler as aventuras dos “Cinco” porque não precisava dos olhos para cumprir o que me era pedido. Bastava sentir a frescura da água lambendo os dedos dos pés para gritar sem dúvida ou hesitação:
– Já chegou!
E depois, desfolhando mais uma página, mudava de lugar, sentava-me mais adiante.

Belino Costa

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