11 de fevereiro de 2006

FÉRIAS NO VERÃO DE 1954

Já lá vão cinquenta anos. Estávamos no começo das férias, no início do Verão de 1954. O ano escolar tinha terminado e os próximos dois meses e meio iriam ser preenchidos com dias de boa vida, passeios, brincadeira, bailaricos e praia. Era tempo de convívio com amigos da terra que haviam passado o ano a estudar em locais diversos, tais como Aveiro, Anadia, Coimbra, Lisboa, Oiã, Oliveira do Bairro e outros. Mas todos estavam de volta à terra natal. Só que estas férias do Verão de 1954 ficaram marcadas por um episódio que vale a pena recordar.
Éramos os quatro da vida airada; o Horácio Vitorino, o Joãozito dos Barrocos, o Vitaliano (VT) Pedro e eu. Todos nós desejávamos ir passar um mês das férias na Praia de Mira, mas nem todos tínhamos dinheiro suficiente para alugar um palheiro e pagar as outras despesas. Fizeram-se contas e mais contas, mas não havia dúvida, nem todos aguentariam com a despesa. Só depois de muita discussão e planeamento decidimos que havia uma maneira de o fazer: acampar na Mata de Mira, perto da povoação e da praia. Mas teríamos de fazer a nossa viagem a pé, de Bustos até à Mata de Mira , e cada um teria que levar a sua mochila carregando tenda de campismo, fogão, utensílios de cozinha, roupa própria, artigos de higiene, etc., etc. Concordámos também que cada um iria gastar a mesma quantia nas férias - cinquenta escudos. Tínhamos, portanto, uma quantia total de duzentos escudos para financiar as nossas férias…
Tudo decidido, lá nos arranjámos e, preparados com as nossas mochilas, aí fomos, via Tabuaço, cross country em direcção a Mira. Partimos num dia de semana, pelo caminho encontrámos muita gente da terra a trabalhar nos campos que, quando nos via, parava e perguntava-nos em voz alta: «onde é que anda a guerra?» E nós nem uma nem duas, lá continuávamos a viagem.
Depois de muitas horas de caminho, chegámos à Mata cansadíssimos e esfomeados. Escolhemos um lugar propicio para acampar, descansámos umas horas e satisfizemos a fome, depois demo-nos à tarefa de montar a tenda, limpar uma área para a cozinha, organizar o nosso alojamento e buscar água potável.
Naquele tempo não tivemos que competir com ninguém na escolha de um lugar para acampar, pois o desporto do campismo não era popular como hoje em dia. A Mata era toda nossa. Rodeados de uma floresta frondosa, com água fresca e límpida na ria, o mar e as areias brancas da extensa praia de Mira ali a dois passos e, a uns dez minutos de caminho, o mercado público, a peixaria, a padaria, etc., nós tínhamo-nos instalado no paraíso!
Isto, sim, era vida!
Cada um de nós tinha o seu trabalho a fazer; O VT era o cozinheiro. Ele encarregava-se de fazer as compras de legumes, fruta, pão, peixe, carne, etc., o necessário para nos mantermos vivos. Os outros eram responsáveis pelo abastecimento de água, o lavar dos pratos, fazer o cafezinho pela manhã, manter o lugar limpo, etc., etc. A verdade é que tudo funcionava com muita harmonia e em boa camaradagem.
Normalmente, depois do pequeno almoço, uns liam um livro, outros iam nadar na água doce da ria. Na parte da tarde, depois do almoço e de uma boa soneca, era uma corrida para a praia onde passávamos as tardes, à noite havia um passeio ao centro urbano, tomar um cafezinho e de vez em quando uma cerveja. É que o dinheiro não era muito. Uma vez por semana à noite, havia cinema ao ar livre. O ecrã estava instalado já na praia, na parte norte da povoação. Que diversão! Havia sempre muita gente na «sala» de espectáculos, sentadinhos na areia e o mais perto possível do sistema sonoro para nada se perder do filme. Que tempos!
Aos fins de semana, tínhamos um visitante da nossa terra. Perto do meio-dia, ao domingo, o ruído da motocicleta anunciava a chegada do nosso amigo Arsénio Mota, que vinha passar uns momentos agradáveis com os amigos.
As nossas férias na Mata de Mira ficaram marcadas com um acontecimento que jamais iremos esquecer. O dia tinha começado como qualquer outro. Levantámo-nos tarde, comemos o pequeno almoço, arrumámos o campo e o Horácio, o Joãozito dos Barrocos e eu fomos tomar banho na ria. O VT ficou em «casa» para planear e preparar o almoço. Pouco antes do meio-dia, quando regressámos, encontrámos um bilhete do VT que dizia: «Ponham água a ferver que eu fui caçar um pato para o almoço.»
Olhámos uns para os outros sem saber o que se passava e esperámos pelo amigo Vitaliano. Passado uma hora, aparece-nos ele com um pau numa mão e um pato real na outra.
- Onde conseguiste tu caçar tal pato?, perguntámos nós.
Ainda muito excitado, o VT explicou-nos que, já há dias, ele tinha visto patos bravos em lagos artificiais, viveiros usados para criar peixe no meio da floresta. Naquela manhã, armado com um bom pau e caminhando com muita cautela para não espantar a presa, aproximou-se passo a passo, vagarosamente, até estar mesmo perto da caça e zzaaas!, fulminou-o o pato com o pau.
Era difícil acreditar na história, mas a verdade é que tínhamos na frente a caça para depenar, limpar, amanhar e cortar, para o nosso caçador cozinhar com arroz. Ficou uma delicia!
O tacho deu-nos para dois dias. Mas, ao terceiro dia, veio a grande surpresa. Ainda estávamos na cama quando tivemos a visita de um guarda florestal. Vinha perguntar-nos se tínhamos visto por ali um pato real. É que o guarda residia um pouco mais ao sul do nosso acampamento e tinha meia dúzia de patos e galinhas; pois havia já uns dias que não via o seu pato real… Olhámos uns para os outros com ar de surpresa e medo, respondemos que não, que nada tínhamos visto! O guarda agradeceu-nos a informação, voltou-nos as costas e desapareceu. Sim senhor, que grande caçador era o nosso cozinheiro! Tinha «caçado» o pato do guarda florestal.
Quando se nos acabou o dinheiro, terminaram as férias. Era tempo de voltarmos para casa, mas desta vez não tivemos que caminhar. Houve alguém que nos deu boleia, poupando-nos a longa caminhada. Trouxemos da Mata de Mira, naquele ano de 1954, recordações que viverão connosco para o resto das nossas vidas.

Alcides Freitas
Fevereiro, 2006
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3 comentários:

  1. Anónimo11:02

    A referência do Alcides à motocicleta em 1954 faz-me lembrar que tal veículo era então ainda bastante raro. Começou, como Alcides sabe, pela introdução (tímida) do motor marca «Cocciolo», que se adaptava à velha bicicleta a pedais. O sr. Maia, que teve oficina auto no Sobreiro, usou um daqueles motores a quatro tempos, a gasolina pura, um brinquedo. Logo a seguir chegaram os motores a dois tempos, a mistura óleo-gasolina, mais simples. E as bicicletas transformaram-se em motocicletas, isto é, começaram a vender-se já com motor e tudo o mais (suspensões, faróis, etc.) devidamente instalado. É verdade, por sinal eu até ajudei a vulgarizar este tipo de veículo em Bustos e arredores! Deverei arrepednder-me? A bicicleta a pedais é muito mais saudável, ecológica, silenciosa e anti-stress -- ou não?

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  2. Anónimo12:52

    O ‘condimento’ trazido pelo Alcides Freitas reaviva o imaginário construído no tempo em que se tinha de aguçar o engenho e arte para se desfrutar algum lazer. Quantas vezes se ‘roubou’ frangos, coelhos, chouriços, queijos, rolas para as “munhacas” e se convidava a vítima, com a condição de pagar a batata frita, o pão e o vinho? (Arsénio Mota já fixou alguns episódios). A peça escrita pelo Alcides é a pedra para a sopa. Há mais estórias a merecer luz. …O ‘arsénio mota’ traz à baila o “Cocciolo”. Em Bustos, o meu pai foi o primeiro a ter um. Como a leveza e a insegurança da máquina conviviam de braço dado foi despachado em três tempos. Estou de acordo e já o defendi que a Bairrada (que até tem sede da Associação de Ciclismo em Sangalhos) deveria ter seguras pistas de circulação da bicicleta. Ainda há pouco tempo, um outro cidadão de Bustos fazia-se transportar de bicicleta na sua deslocação à sede do concelho. O Alcides e os companheiros iam de bicicleta para o colégio, em tempo de chuva ou sol. A ida para as festas, bailes ou praia fazia-se de bicicleta. Hoje, salva-se a buga de Aveiro. A bicicleta ainda pode ter o seu lugar no nosso quotidiano. Para isso não basta cair no calendário o dia sem carros. É indispensável que sejam criadas condições e sensibilização.
    sérgio micaelo ferreira

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  3. Por falar em vítimas das "munhacas" ou "mulhacas", um dia, o James, o Beto do Assis Rei (exímio assador do recém inventado frango), eu e o Cazé do Ti Aires Gordo, convidámos o Jó para uma "mulhacada" de pombas na minha adega. Aceitou, comeu e só chegado a casa pôde saber que as pombas eram dele... O Jó era o "pombinho", não por isso, mas por razões de amores.
    A ver se um dia destes também falo duma célebre excursão em 1969 ao então internacionalmente famoso "Circuito de Vila Real".
    Os turistas e campistas foram: Milton, irmão Hilário, Beto e eu, salvo erro. O Milton pode dar uma achega, com a ajuda duma foto a cores que ainda guardo.

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