18 de setembro de 2005

“BOA CONCEIÇÃO”

Gosto muito do parágrafo de Missa do Galo, de Machado de Assis, em que o narrador lança uma dosagem máxima de veneno sobre a personalidade de Conceição, a senhora, em cuja casa se hospedava, com quem manteve uma célebre conversação numa certa noite de Natal, quando tinha apenas dezassete anos.“Boa Conceição! Chamavam-lhe “a santa”, e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.”

Acho bom destacar o trecho do contexto em que ele se situa, para desvinculá-lo dos problemas de credibilidade desse narrador, o sr. Nogueira, perdido entre as ilusões de óptica produzidas pela memória, e pelo estado de excitação retrospectiva em que se encontra, e os condicionamentos que sobre ele actuavam no momento mesmo em que ocorriam os fatos relatados.
Destacá-lo do contexto para tomá-lo em sua natureza simples de verdade moral e psicológica, fruto de uma observação atenta e aguda das estratégias comportamentais do bicho humano.
Parece que esta é a máscara preferida dos políticos. A de não ser contra, nem a favor, muito antes pelo contrário, desde que, agindo assim, nada arrisquem, nada possam perder, podendo, de forma oposta, tudo ganhar. Isto é, ganhar o apoio e o aplauso gerais. É o caso de quem busca ser simpático a todos, o tipo que Nélson Rodrigues fulminou com a frase: Todo sujeito simpático é um canalha. É aqui que mora toda a canalhice dos políticos. Parece que as pessoas ignoram esta verdade fundamental da Ética – que a autenticidade precede em valor a opção pelo bem ou pelo mal. Que o mais perverso criminoso, capaz de assumir a sua preferência, é um ser eticamente superior àqueles que ficam em cima do muro, tentando tirar vantagens dos dois lados. Nem assumem de peito aberto a prática do grande mal, nem renunciam às pequenas perversidades do dia-a-dia. Como não se entregam à marginalidade ostensiva, podem posar de bons moços e de homens sérios. Mas são seguramente os piores. Daí o medo que tenho dos “homens sérios”. Deles zombo e busco fugir.
De cara, o bandido assumido já traz uma superioridade potencial. Como é capaz de pular decididamente para um dos lados do muro, se algum dia resolver ir para o lado do bem, ele o fará também com toda nitidez.Parece ser este o fundamento da frase do Apocalipse, que os crentes acreditam ser a fala do próprio Deus: Porque não és frio nem quente, eu te vomitarei de minha boca. Ou seja, fosses frio ou quente, não importa, não te deitaria fora. Não vem tanto ao caso que sejas bom ou mau, vale mais que não sejas uma mentira ambulante; que sejas moeda verdadeira, cheque com lastro monetário.Há um outro ponto bastante gostoso de se considerar: os riscos que correm igualmente os que pulam para um ou outro dos dois lados do muro.
A opção pelo bem é tão perigosa quanto a escolha do mal. Porque a grande maioria, preferindo a indefinição, tem como inimigos iguais os optantes, a turma da verdade comportamental, os amantes da autenticidade, irmãos siameses da mesma fraternidade – a dos respeitadores da sacralidade da ética, seja para afirmá-la, seja para transgredi-la, sem temor do conflito com muitos, sem a pretensão dos louvores de todos.
Tristão
http://sarapalha.blogspot.com/

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